quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Óculos Escuros

Acordou, se arrumou, deu um beijo na mulher, uma olhada nas crianças e saiu de casa. Ao pisar na rua já estava de óculos escuros, nunca saia de casa sem eles. Engraçado pensar que em momento algum durante sua correria antes de sair precisou se lembrar dos óculos. Já era automático, assim como comer ou escovar os dentes. Rua = óculos escuros. Ele sabia o quanto o ambiente da rua era hostil. Mas procurava não pensar mais nisso. Se considerava velho e esperto demais para ficar se preocupando com essas coisas.
Então estava na rua novamente. Só mais um dia comum de trabalho. Trabalho, depois casa, com televisão e família, principalmente televisão. Na rua, de óculos escuros, não viu o catador de papelão que estava acordado desde as quatro, também não viu que ele mancava, e muito menos parou para pensar que se o catador tivesse sorte, talvez ganhasse seis reais por dezesseis horas de trabalho. Os óculos escuros não deixavam ele ver direito.
Durante o caminho, em seu sedan – lançado há apenas duas semanas, que sorte ele teve de ter conseguido comprar este carro tão rápido – com ar condicionado e travas elétricas, seus óculos escuros não deixaram que ele visse os meninos de rua no sinal. Talvez já estivesse cansado de ver os mesmos truques com as bolinhas de tênis, talvez nunca tenha se importado com a pobreza alheia. Mas a verdade é que por detrás daqueles óculos escuros ele não enxergava nada. Parecia cego, um cego em carro de luxo.
Chegou ao trabalho, reclamou da fila para o elevador, porém seus óculos escuros não permitiram enxergar o de serviço, que estava vazio, por exceção de uma moça, que também não conseguiu ver. Moça de avental cinza. Cinza que nem seu prédio. Cinza que nem sua vida.
Durante o trabalho – exaustivo, meu deus do céu, com é complicado comprar e vender ações! – tratou mal novamente a pobre mulher do cafezinho, que nunca acertava seu gosto. Coitado dele, aqueles óculos escuros não deixavam ele ver o quanto a mulher do cafezinho estava triste. Não era culpa dele não saber que a casa dela tinha desabado de novo, ou que seu filho estava novamente roubando-a por crack, ou que seu neto não tinha fraldas e nem papinha pra papar. A culpa era mesmo dos óculos escuros. Não enxergava nada com eles.
Finalmente saiu do trabalho, espumando de raiva do chefe, que o criticou por não ter atingido a cota do dia. Parece que ele não lucrou o suficiente nem para pagar a empregada. Seu dia não foi bom, e por não conseguir enxergar direito por causa dos óculos escuros, saiu esbarrando em mil pessoas na calçada. Não viu que esbarrou em uma velhinha, derrubando suas compras, não viu que ao trombar em uma moça de gravata fez ela derrubar os documentos tão bem documentados que ela tinha que entregar ao seu chefe, e muito menos teve a capacidade de ver que o balão do menininho recém atropelado por ele agora estava subindo aos céus. O trabalho, talvez mais do que seus óculos escuros, também afetava sua visão.
No caminho, perdeu a chance de ver o sorriso do mendigo que ganhou vinte e cinco dos seus tão suados centavos. Seu movimento ao jogar a moeda foi tão automático, que se o perguntassem se o mendigo era homem ou mulher, não saberia responder. Malditos óculos escuros.
Carro, rua, semáforo, menino, bolinhas de tênis. Ar condicionado, rua, catador, prostituta, óculos, escuros. Portão, porteiro, porta, patroa. Não viu nada, não vê nada, não verá nada. Chegou em casa. Tirou os óculos escuros. Agora via. Viu seus filhos correndo ao seu redor e enchendo seu saco já tão cheio pelo trabalho. Viu sua mulher tão romântica consigo, porém meio avoada, já que não percebeu que o que ele queria mesmo era o sofá.
Sentado no sofá não era mais cego. Aquela cegueira que usava na rua não existia mais. Em casa dispensava a cegueira que a rua tanto pedia. Em casa não precisava de óculos escuros. Na segurança de seu lar podia ver tudo certinho. Diante de sua tão amada televisão podia ver à uma distância segura tudo que na rua não via. Viu o tráfico, a pobreza, a fome e a guerra. Viu, mas não assimilou. Não tinha necessidade, se considerava velho e esperto demais para ficar se preocupando com essas coisas.
Dormiu como um bebê no sofá, acordou na cama e em segundos estava em seu sedan, pronto para o trabalho, e já cego. De óculos escuros.

2 comentários:

  1. Texto simples, porém, muito eficiente. Me agradou muito!!!

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  2. Simplesmente,emocionante!
    Realmente há muito desta cegueira "óculos Escuros",esta cegueira social...que cega feiamente a humanidade!
    o que aconteceu com os sentimentos?Com a vontade de mudar?Fingimos q não é um problema nosso...Estamos simplesmente á costumados!

    Parabéns João,pela sua sensibilidade q sensibiza aqueles que leem o q vc escreve!
    bjao.Jacqueline Lopes

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