quarta-feira, 11 de maio de 2011

Penso, logo não escrevo

O escritor sempre diz: eu tenho tanto para escrever. As pessoas sempre dizem ao escritor: nossa você escreve tão bem, por que não escreve mais? O escritor então pensa: porque diabo não consigo colocar o que penso na porra de um papel? Mas a verdade é diferente. A escrita não aflora porque o escritor quer escrever, e nem porque o leitor quer ler. A escrita surge porque as palavras querem ser ditas.


Já li em algum lugar que o escritor não cria o que escreve, ele simplesmente pega as ideias no ar. Então eu, que estou sem ideias, sem palavras e sem paciência para esperar que minha imaginação funcione, vou simplesmente escrever sobre como não sei sobre o que escrever. E assim escrevo covardemente, apenas roubando de mim mesmo palavras que queriam ser ditas – ou não.


A coisa vai piorando quando durante a escrita a falta de ideias também vai se esgotando, e o medo de não conseguir terminar o próximo parágrafo vai crescendo. Aflição maldita esta que bate no peito, que faz pensar que o texto ficará curto demais para tanto nada a ser dito.


E toda esta vergonhosa situação clama por um final que seja ao menos legível. O meu final será falar do final do escritor (aquele bem metafórico e distante): mesmo rodeado de ideias, de palavras, de imaginação, de pessoas dizendo “escreva”, o escritor sempre termina sozinho. Minto, ele sempre termina com a vontade de escrever.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Tempo, tempo, tempo

Foi-se o tempo em que o tempo era um problema. Se antigamente as pessoas reclamavam de sua falta, hoje isto já é praticamente retórico. Tudo se adapta com o tempo. E o tempo se adapta a nós. Ele não corre diferente, não se apressa ou diminui sua velocidade por isso, mas a verdade é que está brutalmente dominado.

Todos os dias ao acordar pensamos no que temos que fazer hoje, amanhã e depois de amanhã. Trabalho, estudo, diversão tornam-se apenas marcas em uma agenda. Pensamos nisso antes mesmo de dormir. O tempo não altera sua velocidade, mas mesmo assim foi domado. É controlado, dosado e gasto na medida de nossas necessidades. Desta forma conseguimos nos sentir responsáveis pelas nossas vidas, e até o momento de paixão acaba reduzido a uma mera formalidade, curta e vazia.

Nossa concepção de tempo como instrumento de sucesso acabou mecanizando nossas funções. E como robôs nos saímos muito bem. Aprendemos a dividir nosso tempo numa proporção de dez para um, na qual o lazer tem papel figurante. Afinal é o trabalho que nos torna cidadãos respeitados, que cumprem seu dever. E assim fugimos de um dos papéis mais marginalizados da sociedade, assim ninguém nos chama de vagabundos. Desta forma somos coerentes com nossa falta de ser.

A questão é: todo esse controle realmente nos faz bem? Somos tão felizes quanto pensamos ser? Sinceramente, acho que não. De certa forma tem sorte aquele que não tem tempo para perceber isso. E de forma alguma proponho saída, já que esta é pessoal e intransferível, como os cartões de crédito. Mas, ainda me pisca uma fagulha de esperança.

Eventualmente há de se perceber que o ser humano merece mais que essa maçante rotina – nascer, crescer e morrer. Talvez venha um dia em que alguém dedique seu tempo a sanar a nossa falta de tempo. Sei que é pedir muito, mas insano mesmo é aceitar sem ao menos questionar, que a vida é só isso mesmo.

Hoje depois do trabalho, ou amanhã, no meu intervalo, vou redigir um protesto único e singelo, para quem eu não sei, talvez seja para mim mesmo. Quem sabe dentre todas as minhas obrigações eu não volte ler tal protesto um dia. Quem sabe quando lê-lo, eu não lembre de uma época em que me pegava imaginando o meu futuro. Não o meu trabalho, saúde ou a economia mundial, mas o meu futuro. Aquele mesmo, no qual eu me via jogando um frisbee para um cachorro, no parque com a família. Clichê, não? Pelo menos neste sonho eu não uso um relógio.

A data é só mais um detalhe


Dois amigos conversam em um bar:


-Sei não, muita teoria da conspiração pra mim...

-Pensa bem, é apenas mais uma data criada por comerciantes, é puro lucro cara!

-Que seja, mas ainda assim tem um significado. Você fala assim porque é um puta dum sozinho.

-Sozinho porque quero, esse negócio de namoro não é comigo.

-Sei, sei...E aquela menina do seu prédio...aquela que você vive falando?

-Aquela esquisita? Nem fala cara...depois dessa eu vou até embora...

-Que isso, vamos de saidera...mais uma ai vai?

-To fora, agente se vê por ai...


Porra, aquele filho da puta sempre me deixa assim, sempre sabe o que falar. Maldito dia dos namorados, que sempre me deixa nervoso. Cade minha chave, não é possível que eu perdi de novo... agora, pra fechar a noite, só falta aquela menina estar lá, de novo, na porta do apartamento dela como que me esperando, ela sempre faz isso, eu odeio isso. Que que ela quer comigo afinal? Sempre me dando esse olhar...juro que não entendo. Sempre sozinha e ouvindo musica ruim. Não entendo, ela até que é bonitinha. Ela e aquele maldito rosto indecifrável. Aposto que agora está lá na varanda. Esperando alguma coisa. Olhando o céu.


E ele realmente foi à varanda, e lá estava ela, parada, fumando um cigarro. Pela primeira vez resolveu encará-la. Cinco minutos depois ainda estava lá, tentando entender aquela coisa que ela tinha no olhar. Mas o que entendeu mesmo era que o mais importante era esse mistério, esse não entendimento, essa atração estranha que se sente do nada por alguém que se vê todo dia. E lá estavam eles, a meros três metros um do outro, cada um em sua varanda. Sem boca nem pele, só o olhar valia.


Não sabia ainda, mas já estava namorando.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Deus e o Diabo na terra do capital

- E cala-te tu, que nada sabe do todo poderoso, do leão de Judá, do grande Deus, que está acima de nós, julgando todas as nossas ações, preparando nosso julgamento final, nos preparando para o momento em que todos aqueles pecadores que não contribuíram para a causa de nosso senhor Jesus irão para o inferno, e nós, humildes trabalhadores de Cristo, que doam o pouco que tem para este templo de Deus, e que...
- Hã... Desculpa atrapalhar, mas será que dá pra você abaixar um pouco o volume, é que eu to tentando estudar e...
- Quem é tu que interrompe o sermão de inúmeros servos do Senhor?
- Inúmeros? Quer dizer, só tem seis pessoas aqui, e uma acho que ta dormindo, ou será que morreu?... bem isso não importa, acontece que sou teu vizinho de parede e to tentando estudar sabe, tenho prova amanhã e...
- Acredita em Deus meu jovem?
- Nada contra não, mas é que meu negócio é com outro.
- Se acreditasse em Deus não precisaria estudar, bastaria estar aqui ouvindo o sagrado sermão da bíblia.
- Como assim, a bíblia ensina química? Não sabia não, mas o problema é que a linguagem dela é meio inacessível né...
- Você disse que seu negócio é com outro?
- Pois é, fechei negócio com o outro lado, assim que aprendi a ler e assinar meu nome.
- Fez um pacto com o Diabo?
- Pois é, salvação por salvação fiquei com o inferno, pelo menos no contrato de lá dizia que tinha virgens me esperando.
- Ó infiel, trema pois o inferno te espera... pérai você disse virgens?
- Tava no contrato.
- Mas virgens não é coisa de muçulmano?
- Concorrência de mercado, sabe como é, o Diabo teve que se adaptar, passou por um período ruim depois do divórcio, sabe como é né.
- Sei... Minha mulher pregava comigo na Assembléia Congregada dos Servos Doadores. Agora cá estou eu, na Descongregação dos Devedores. Mas de qualquer forma arrependa-se dos seus pecados e Deus o salvará!
- Num sei não viu, as pesquisas dizem o contrário. Parece que 80% dos processos envolvendo entidades superiores no PROCON são contra Deus. E o resto é contra um tal de Barack Obama.
- Mas de qualquer jeito o Diabo engana meu jovem.
- Olha, quando eu tava atrás de garantir minha salvação fiz o pedido para todos os departamentos, e o único que me respondeu foi o do inferno. E peguei uma promoção boa viu, fechei um pacote família.
- Envolveu sua família nisso?
- Claro! Pelo menos dois netos meus já tem vaga garantida.
- Meu bom Deus, me ajude com este jovem!
- Olha cara vê se desiste. A concorrência ta braba e parece que Deus pegou mais casos que podia, e agora não tá conseguindo atender todo mundo. Complicado viu...
- Mas porque foi escolher justo o Diabo meu filho?
- Olha, eu tava bebendo e a cerveja acabou. Na falta de outros, só consegui falar com o do Tridente.
- Mas ele te garante proteção contra os males do mundo meu jovem?
- Opa e das boas viu. Agora ele contratou o BOPE para fazer segurança. Serviço meio violento, bem como ele gosta. E Deus? Como que tá o serviço dele?
- Olha, eu rezo bastante. Consegui até comprar uma torradeira semana passada.
- Então os negócios vão bem?
- Dia de semana é pior, mas domingo é uma beleza. Loto o culto de manhã e de noite. Muito pecador de final de semana. Vai a algum culto?
- Hum... Tem os Corações Satânicos, mas não vai quase ninguém nas reuniões. Acho que é por isso que os serviços do Diabo tão a um bom preço. Depois de todo aquele negócio da inquisição ele ficou meio mal falado.
- As revistas de fofoca castigaram mesmo ele na época... Apelaram um pouco. Mas o que é que você veio fazer aqui mesmo?
- Vim pedir pra você abaixar um pouco o volume, quando você ta falando no microfone até que da pra agüentar, mas quando inventa de cantar...
- Tudo bem, meu filho, eu abaixo um pouco. Vai com Deus, hehehe.

E o pastor virou-se para seus congregados e lá só estava a velhinha dorminhoca, que mais tarde foi descoberto que estava morta mesmo. Aparentemente as outras pessoas ouviram o estudante e foram procurar o Diabo, fazendo o pastor concordar que o pacote família é realmente atraente.

Alguns meses depois o estudante já estava formado e milionário, trabalhando para uma empresa tabagista. Ele e o Diabo viraram amigos, e jogam pôquer todas as segundas quartas-feiras do mês. Já o pastor, tentou achar o Diabo, visto que Deus não estava fazendo o serviço direito. Mas foi acusado de tentativa de quebra de contrato, e acabou tendo de procurar o PROCON. Com mais esta reclamação, o número de processos contra Deus já alcançou o status de apócrifo.

Óculos Escuros

Acordou, se arrumou, deu um beijo na mulher, uma olhada nas crianças e saiu de casa. Ao pisar na rua já estava de óculos escuros, nunca saia de casa sem eles. Engraçado pensar que em momento algum durante sua correria antes de sair precisou se lembrar dos óculos. Já era automático, assim como comer ou escovar os dentes. Rua = óculos escuros. Ele sabia o quanto o ambiente da rua era hostil. Mas procurava não pensar mais nisso. Se considerava velho e esperto demais para ficar se preocupando com essas coisas.
Então estava na rua novamente. Só mais um dia comum de trabalho. Trabalho, depois casa, com televisão e família, principalmente televisão. Na rua, de óculos escuros, não viu o catador de papelão que estava acordado desde as quatro, também não viu que ele mancava, e muito menos parou para pensar que se o catador tivesse sorte, talvez ganhasse seis reais por dezesseis horas de trabalho. Os óculos escuros não deixavam ele ver direito.
Durante o caminho, em seu sedan – lançado há apenas duas semanas, que sorte ele teve de ter conseguido comprar este carro tão rápido – com ar condicionado e travas elétricas, seus óculos escuros não deixaram que ele visse os meninos de rua no sinal. Talvez já estivesse cansado de ver os mesmos truques com as bolinhas de tênis, talvez nunca tenha se importado com a pobreza alheia. Mas a verdade é que por detrás daqueles óculos escuros ele não enxergava nada. Parecia cego, um cego em carro de luxo.
Chegou ao trabalho, reclamou da fila para o elevador, porém seus óculos escuros não permitiram enxergar o de serviço, que estava vazio, por exceção de uma moça, que também não conseguiu ver. Moça de avental cinza. Cinza que nem seu prédio. Cinza que nem sua vida.
Durante o trabalho – exaustivo, meu deus do céu, com é complicado comprar e vender ações! – tratou mal novamente a pobre mulher do cafezinho, que nunca acertava seu gosto. Coitado dele, aqueles óculos escuros não deixavam ele ver o quanto a mulher do cafezinho estava triste. Não era culpa dele não saber que a casa dela tinha desabado de novo, ou que seu filho estava novamente roubando-a por crack, ou que seu neto não tinha fraldas e nem papinha pra papar. A culpa era mesmo dos óculos escuros. Não enxergava nada com eles.
Finalmente saiu do trabalho, espumando de raiva do chefe, que o criticou por não ter atingido a cota do dia. Parece que ele não lucrou o suficiente nem para pagar a empregada. Seu dia não foi bom, e por não conseguir enxergar direito por causa dos óculos escuros, saiu esbarrando em mil pessoas na calçada. Não viu que esbarrou em uma velhinha, derrubando suas compras, não viu que ao trombar em uma moça de gravata fez ela derrubar os documentos tão bem documentados que ela tinha que entregar ao seu chefe, e muito menos teve a capacidade de ver que o balão do menininho recém atropelado por ele agora estava subindo aos céus. O trabalho, talvez mais do que seus óculos escuros, também afetava sua visão.
No caminho, perdeu a chance de ver o sorriso do mendigo que ganhou vinte e cinco dos seus tão suados centavos. Seu movimento ao jogar a moeda foi tão automático, que se o perguntassem se o mendigo era homem ou mulher, não saberia responder. Malditos óculos escuros.
Carro, rua, semáforo, menino, bolinhas de tênis. Ar condicionado, rua, catador, prostituta, óculos, escuros. Portão, porteiro, porta, patroa. Não viu nada, não vê nada, não verá nada. Chegou em casa. Tirou os óculos escuros. Agora via. Viu seus filhos correndo ao seu redor e enchendo seu saco já tão cheio pelo trabalho. Viu sua mulher tão romântica consigo, porém meio avoada, já que não percebeu que o que ele queria mesmo era o sofá.
Sentado no sofá não era mais cego. Aquela cegueira que usava na rua não existia mais. Em casa dispensava a cegueira que a rua tanto pedia. Em casa não precisava de óculos escuros. Na segurança de seu lar podia ver tudo certinho. Diante de sua tão amada televisão podia ver à uma distância segura tudo que na rua não via. Viu o tráfico, a pobreza, a fome e a guerra. Viu, mas não assimilou. Não tinha necessidade, se considerava velho e esperto demais para ficar se preocupando com essas coisas.
Dormiu como um bebê no sofá, acordou na cama e em segundos estava em seu sedan, pronto para o trabalho, e já cego. De óculos escuros.